Nas últimas semanas tenho tentado começar meus atendimentos perguntando aos pacientes como estão as coisas e como estão se sentindo diante da pandemia do corona vírus. As respostas que recebi são variadas, mas muito semelhantes na sua essência: “Estou ansioso”, “Estou preocupado”, “Me sinto triste”, “Estou angustiado”, “Estou com medo”, “Sinto algo esquisito que não sei explicar”, “Sinto um aperto no peito”...
Neste momento, estamos lidando com duas disseminações: do próprio vírus e das emoções que ele desperta. Emoções negativas são tão transmissíveis quanto o vírus e a natureza delas também é nociva. Essas emoções prejudicam nossa capacidade de pensar de forma clara e dinâmica, bem como nossa habilidade de focar em prioridades pertinentes e de fazer escolhas racionais e fundamentadas.
Nos últimos dias fiz muitas pesquisas sobre o tema e, com base nestas, me propus a escrever algo que pudesse de alguma forma abrandar a disseminação dessas emoções nocivas e do sofrimento decorrente delas.
Como podemos enfrentar essas emoções?
O ponto de partida é perceber o que estamos sentindo, mas isso não é tão trivial e instintivo quanto imaginamos. Muitos nunca foram orientados com respeito às emoções, muitos foram ensinados a suprimi-las e muitos convivem com regras sociais que reprovam a expressão delas.
A pandemia, como o próprio nome diz (do grego: [pan = tudo/ todo(s)] + [demos = povo]), atinge a todos nós. Seus efeitos mostram particularidades em cada indivíduo e ao mesmo tempo uma uniformização na humanidade. Nós, humanos, cada um a sua maneira, estamos sofrendo coletivamente.
Neste contexto experimentamos sofrimentos variados e em intensidades variáveis. As ruas vazias que chocam nossas representações mentais da realidade, a apreensão com a economia, a frustração do cancelamento de planos, o temor de adoecer ou de perder pessoas que amamos, a saudade provocada pelo distanciamento do contato, a insegurança diante da duração indeterminada e do desfecho indefinido.
Grande parte deste sofrimento é antecipatória, resultante de pensamentos que projetam imagens do que o futuro pode nos reservar quando este é incerto.
Sentimos isso, por exemplo, quando percebemos um risco concreto: nos deparamos com um trânsito intenso à frente e começamos a imaginar os possíveis desfechos negativos disso: “ficarei preso aqui por horas”, “vou me atrasar para o compromisso”, “meu chefe vai ficar bravo”, “vou sofrer uma punição” e assim por diante. A maioria dos paulistanos já esteve nessa situação e sentiu irritação, preocupação, angustia e até mesmo desespero.
Com o vírus essa emoção pode ser mais desconcertante. Nossa mente sabe que algo ruim está acontecendo, que existe uma ameaça, mas não podemos vê-la e não a conhecemos. Isso agrava a quebra do nosso senso de segurança e sofremos ainda mais com esta privação de segurança.
Estamos todos sofrendo em algum grau, tanto pelo que vivemos agora quanto pelo que projetamos do amanhã.
Identificando e entendendo nossas emoções
Não conseguimos mudar aquilo que não percebemos. Por isso, o primeiro passo é se tornar mais consciente do que está sentindo neste momento.
Para ajudar a compreender estes sentimentos, vou me apoiar em uma equiparação bastante acessível feita em um dos artigos que li nas últimas semanas. Tal artigo faz um paralelo entre o que estamos sentindo diante da epidemia e o luto. Essa comparação não é exata, mas talvez traga alguma estrutura para essa compreensão.
Simplificadamente o luto pode ser definido como o conjunto de emoções que sentimos em resposta às mudanças e perdas em nossas vidas. O luto é um processo natural e normal e pode ocorrer diante de perdas que aconteceram (falecimento de entes queridos, término de relacionamento, perda de emprego, fracasso de planos, etc) e diante de perdas e mudanças que podem acontecer (quando alguém recebe um diagnóstico temido, quando se pensa na possibilidade de uma separação ou na perda de entes mais velhos que pode acontecer algum dia, etc).
Abaixo descreverei de forma simplificada os diferentes estágios do luto. Entender este processo pode ajudar nesta situação, mas vale frisar que o trajeto do luto não é linear e suas fases podem não acontecer na mesma ordem para todos.
Negação:
Uma dos primeiras fases transcorridas no luto é a negação. Nesta fase não aceitamos a perda vivida ou que pode estar por vir. Como, por exemplo, quando alguém é demitido e volta a trabalhar no dia seguinte se sentindo e se comportando como se nada tivesse acontecido.
Muitos experimentaram a negação no início da pandemia e muitos ainda a experimentam hoje: “Este vírus não vai nos atingir”, “Isso não está acontecendo”.
Raiva:
Neste estágio sentimos raiva, ira e frustração. Essa raiva pode ser direcionada a alguém que achamos que contribuiu ou possa contribuir para nossa perda e também a alguém que achamos não esteja vivendo a perda ou possibilidade de perda da forma que deveria. Como, por exemplo, quando um plano pessoal não dá certo e ficamos com raiva das pessoas envolvidas e de nós mesmos por achar que não houve a dedicação apropriada.
Nos dias de hoje observamos isso constantemente: “O presidente é isso, o governador é aquilo”, “A culpa é dos chineses”, “O país é um fracasso”, “O povo é ignorante”, “Por que Deus está permitindo que isso aconteça?”, “Isso não é justo!”.
Barganha:
Esta é a parte do luto em que tentamos fazer um acordo para evitar, minimizar ou reverter a perda. Notamos isso muitas vezes quando alguém amado adoece. Nós rezamos, imploramos a Deus, fazemos promessas de que seremos pessoas melhores e acreditamos que isso, de alguma forma, fará com que ele se recupere.
Hoje em dia muitas vezes nos pegamos pensando: “Tudo bem, então é só me isolar por algumas semanas e isso vai acabar, certo?”, muitos de nós têm rezado como há muito não rezava, pedindo a Deus que proteja quem amamos.
Depressão:
Esta fase é caracterizada por um sentimento de tristeza, acompanhado da sensação de impotência, culpa e desesperança. Muitas pessoas, por exemplo, ao terminarem um relacionamento amoroso, pensam que nunca superarão isso, que nunca mais encontrarão alguém e que ficarão sozinhas para sempre.
No contexto atual muitos dizem: “Não temos o que fazer, milhares de pessoas morrerão”, “Não temos como dar conta de tantos casos”, “Isso nunca vai acabar”.
Aceitação:
Nesta etapa conseguimos aceitar os fatos e ter uma visão mais realista deles. O desespero com relação a perda se enfraquece e ficamos mais conscientes, permitindo o enfrentamento da perda ou da possibilidade dela com mais racionalidade. Por exemplo quando um indivíduo perde seu emprego e em dado momento busca entender o que houve de fato, se houve falhas da sua parte, o que poderia ter sido diferente, procura se requalificar e encontrar um novo emprego.
Como se pode perceber, foi com a aceitação da maior parte dos governantes e da população que teve início a longa jornada de combate à epidemia no mundo. “Ok, isso está mesmo acontecendo, como vamos agir?”, “Vamos convocar especialistas e montar um plano de contingência com base no que foi observado em outros países”, “Vou respeitar o isolamento e, caso precise sair, tenho que manter uma distância segura de outras pessoas, seguir medidas de higiene respiratório, lavar minhas mãos etc”, “Posso aprender a trabalhar virtualmente”, “Posso usar equipamentos de proteção e, na escassez destes, posso estudar formas seguras de reaproveitá-los” e assim por diante...
Identificar e compreender nossos sentimentos não nos isenta de senti-los, mas traz a possibilidade de gerenciá-los de modo a atenuar nosso sofrimento e os impactos dele sobre nossas vidas e nossa comunidade.
Gerenciando nossas emoções
Ao tomar consciência do que está sentindo nos dias de hoje é possível que se perceba vivendo um “combo” de emoções negativas concomitantes. Medo, vulnerabilidade, confusão, preocupação, ansiedade, angústia, vitimização, abandono, solidão, carência, desapontamento, frustração, tristeza, desesperança, irritação, revolta, indignação, raiva, entre outros. Tais emoções são totalmente coerentes com o contexto que enfrentamos, no entanto (e infelizmente) estes sentimentos muitas vezes nos levam a reagir impulsivamente, reativamente, e desordenadamente.
1) Tente se acalmar
Para administrar de modo eficiente estas emoções, precisamos inevitavelmente tentar nos acalmar, a despeito do que estiver acontecendo ao nosso redor.
Uma técnica simples, mas produtiva, é usar a respiração. Inspirar pelo nariz contando até três e expirar pela boca contando até seis pode ser tranqüilizador.
O exercício físico também ajuda. Mesmo com academias de ginástica fechadas e a necessidade de distanciamento social, que pode atrapalhar os exercícios ao ar livre, podemos e devemos nos movimentar. Assista uma das incontáveis aulas de ginástica ou dança disponíveis online e se entregue a elas. Dance, pule, treine e transpire o quanto possivel! Esta é uma maneira rápida e confiável de descarregar o estresse e tranqüilizar o corpo e a mente.
Ao se acalmar, conseguirá raciocinar e se acolher melhor frente aos acontecimentos presentes.
2) Fique no presente
Outro ato benéfico é nos recobrar o presente. Como colocado antes, o sofrimento antecipatório resulta da nossa própria mente indo para o futuro e imaginando o pior. Tente se manter no presente. Quem pratica meditação ou mindfulness está familiarizado com esta técnica.
Perceba que, no presente, nada que você antecipou aconteceu. Neste momento, você está bem. Você tem comida. Você não está doente. Use seus sentidos, veja e sinta as coisas ao seu redor, respire com calma, sinta sua respiração. Isso vai ajudar a abrandar a dor.
3) Questione seus pensamentos
Mesmo tentando nos manter no presente, os pensamentos podem nos arrastar para o futuro e, inevitavelmente, faremos suposições a cerca dele e estas suposições nos provocarão emoções.
Com uma ameaça à vista, nossa mente começa a nos mostrar imagens. Os piores cenários possíveis são contemplados: entes queridos adoecendo, pessoas morrendo, o mundo indefinidamente em recessão, todos perdendo seus emprego, entre outros. Nossa mente, por incrível que pareça, está tentando nos proteger ao nos alertar para os possíveis riscos. No entanto, ao assumir que os cenários imaginados são reais experimentamos emoções desagradáveis que nos levam a agir de forma reativa.
O objetivo não deve ser ignorar essas imagens e as emoções que elas despertam, nem tentar fazê-las desaparecer, nossa mente não permite isso e forçar pode ser extremamente cansativo e improdutivo. O objetivo é ponderar o que estamos pensando ou imaginando e consequentemente o que estamos sentindo.
Se você percebe que a pior imagem está tomando forma em seus pensamentos, questione racionalmente esta imagem e se force a pensar em melhores cenários que podem acontecer. Nenhum dos cenários, nem o pior nem o melhor, deve ser ignorado e nem tomado como verdade, é preciso encontrar um equilíbrio entre eles.
Aqui estão algumas perguntas que podem ajudar a questionar as imagens negativas que surgirem: Quais evidências existem de que esta imagem vai de fato acontecer? Quais evidências existem que contrariam o que estou pensando? Existem imagens ou cenários alternativos? Qual seria o melhor cenário possível? Qual o desfecho mais realista?
Faça este questionamento quantas vezes forem necessárias. Recorde-se regularmente que este é um estado temporário e que a humanidade já passou por situações semelhantes outras vezes e venceu. A história mostra que existem medidas de controle e estamos tomando todas as providências para isso, adotando medidas pertinentes individualmente e coletivamente.
4) Deixe fora o que está fora do seu controle
Essa é uma postura fundamental hoje e sempre. Aceite e deixe ir aquilo que não pode controlar.
O que seu vizinho está fazendo está fora de seu controle, o sofrimento do outro e a forma como ele se expressa frente aos acontecimentos também. O que está em seu controle é orientar, tentar compreender, acolher quando possível, manter as medidas preventivas e cuidar de si mesmo. Concentre-se nisso.
5) Pratique compaixão
Esta é a hora de praticar a compaixão. Cada um experimenta diferentes níveis de dor, medo e tristeza; e as manifestações destes terão formas diferentes também em cada um. Mudanças no comportamento habitual de quem conhecemos podem acontecer, pessoas podem apresentar muitas vezes comportamentos incompreensíveis à superfície, mas talvez seja assim que eles estão conseguindo lidar com seu sofrimento. Então respeite e seja paciente.
6) Encontre seus propósitos
Com o tempo os acontecimentos farão mais sentido, encontraremos uma significação para o que está havendo. Mesmo com barreiras físicas, as pessoas estão percebendo que podem sim estar conectados com outras pessoas, seja através da tecnologia seja através dos incontáveis gestos de carinho que estamos presenciando. Nós não estamos tão afastados quanto pensávamos. Lembramos que temos vizinhos e percebemos que podemos usar nossos telefones não só para mensagens mas também para longas conversas. Descobrimos que somos capazes de fazer coisas que nem imaginávamos. O tempo parece ter desacelerado e estamos percebendo que não precisamos correr tanto, que podemos viver sem a pressa que nos acompanhava a todo instante. Estamos voltando a apreciar prazeres simples como uma caminhada, um abraço, um encontro, um bate-papo...
Cada um encontrará seus propósitos no que está acontecendo agora e no que transcorrerá quando tudo isso acabar.
Por fim, com este apanhado de idéias, espero contribuir de alguma forma na transição do estado atual de domínio de emoções negativas, para um estado mais ordenado que possibilite o abrigo das vulnerabilidades, a amenização da dor e a tomada de decisões mais conscientes.